O Flamengo que se escreve: diferentes formas de transformar paixão em literatura

O Flamengo sempre foi escrito antes mesmo de ser lido. Desde Mário Filho, o clube virou metáfora de um país inteiro: alegria, drama, fé e contradição no mesmo parágrafo. No Dia Nacional do Livro, celebrado nesta quarta-feira (29), o MundoBola Flamengo ouviu três autores que ajudam a transformar o clube em literatura
➕ Do campo às páginas: o Flamengo é também literatura
Arthur Muhlenberg, Marcelo Dunlop e Maurício Neves de Jesus são três dos principais nomes dessa escrita. Em entrevistas, eles revelam o que move quem escreve o clube, refletem sobre a literatura rubro-negra e mostram como o Flamengo pode ser contado como epopeia, crônica ou exercício de memória coletiva.

Autorizada pela Portaria SPA/MF Nº 2.090, de 30 de dezembro 2024 | +18 | Publicidade | T&C Aplicam-se | Jogue com Responsabilidade.
Autores rubro-negros não apenas registram vitórias ou derrotas. Eles transformam sentimentos em crônicas, lembranças em capítulos e arquibancadas em cenário literário. Cada um escreve o Flamengo à sua maneira: com humor, lirismo, pesquisa ou traço. Juntos, constroem um acervo que traduz a alma de um clube que não cabe apenas em campo.
O clube que virou personagem
Há quem diga que o Flamengo é mais do que tema: é personagem. Arthur Muhlenberg, autor de Hexagerado e Libertador, descreve o clube como uma força quase mítica, responsável por transformá-lo em cronista de um sentimento que não cabe em rótulos.
“Tenho o feio costume de terceirizar culpas o tempo todo, mas a culpa toda é do Flamengo mesmo”, diz. “Dele ser o que é, dele ser o que aparenta ser e de ser o que será um dia. Acho que falta literatura rubro-negra em todos os campos do conhecimento, nas ciências, nas relações internacionais, na pesquisa, na culinária, na história em si.”
Ele reconhece que a explicação para esse amor não é racional: “Quanto ao desejo de entender a razão do amor, nunca me preocupei. Eu sou o que sou, o Flamengo é o que é. E assim vamos em frente, sempre muito maiores que a própria vida.”
Maurício Neves de Jesus compartilha a mesma ideia, mas com outro tom. Para o autor da trilogia Me Arrebata, que narra a história do Mengão em HQs o Flamengo é transcendência. É fé.
“O Flamengo é a maior coisa que vamos conhecer nesta existência, e mesmo assim cabe num abraço. Só acha que a vida não tem sentido quem não é Flamengo.”
As palavras de Maurício soam como uma prece. São lembranças de um tempo em que o rádio era o elo entre pai e filho, gol e eternidade. O sentimento o levou a escrever sobre o clube, movido pela vontade de preservar o que o tempo apaga.
Marcelo Dunlop, jornalista e autor de Crônicas Flamengas e O Homem que Morava no Maracanã, vê o mesmo personagem de outro ângulo. Para ele, o Flamengo está nas esquinas e nos bares, nas histórias que se contam entre uma cerveja e outra.
“A primeira crônica decente que publiquei foi sobre o velório do Carlinhos Violino”, relembra. “Fui à Gávea prestar minha homenagem. Puseram um rapazola tocando violino perto do caixão, o Zinho surgiu arrasado, começaram a me contar tantas histórias… Cheguei em casa e percebi que a crônica, além de uma homenagem, é um modo de organizar nossas tristezas.”
A escrita da arquibancada
Escrever o Flamengo é também uma forma de reviver a arquibancada. Tentar traduzir a emoção e o grito em palavras. Dunlop faz disso uma arte. Seu texto tem o ritmo das arquibancadas do Maracanã, oscilando entre humor, ternura e caos.
“Eu na maioria das vezes escrevo a crônica que gostaria de ler. Quando vejo um maluco dando cambalhotas na rampa do Maracanã, ou outro doido doando as chinelas quando o Mengo vence, acordo com urticária. Ou escrevo o que testemunhei, ou a cena fica ali, coçando.”
O cronista destaca uma literatura rubro-negra tão antiga quanto o clube, que completará 130 anos no dia 15 de novembro. Uma história iniciada com João do Rio e Mário Filho e segue avançando com as gerações. Afinal, o cotidiano rubro-negro é um universo praticamente inesgotável.
"O mais complicado é não repetir o que já foi feito, mas cabe a cada um encontrar seu estilo. A antologia 'Era uma vez: Flamengo' é um belo exemplo. Sou jornalista, então me habituei mais a escutar e relatar do que criar situações. O Rio tem tanta figura, o futebol tem tanto patife, o Flamengo tem tanto monstro sagrado. Vou espremer a mufa para quê?", brinca.
Arthur Muhlenberg também partiu da arquibancada, mas aliou o concreto ao teclado. Foi um dos primeiros a transformar a internet num campo literário rubro-negro. Entre ambos, há um ponto em comum: a urgência. Escrever é impedir o esquecimento.
“Há uns 30 anos, o Flamengo estava ali há mais de um século e poucos se animavam a bulir com ele. Fui lá, dei umas canetadas para ver se o bicho era brabo e vi que era. Como dizia o Nelsão, se Euclides da Cunha tivesse esperado três anos teria escrito sobre o Flamengo e não sobre Canudos.”
Maurício, por sua vez, nasceu da mesma urgência, mas movido pela preservação. “Quando eu tinha dez anos, ouvi um programa sobre jogadores esquecidos. Um deles era o Caxambu, que havia sido centroavante do Flamengo. Ele disse: ‘não me importa que não lembrem de mim, meu medo é esquecer’. Aquilo me marcou. Ali nasceu meu desejo de escrever o Flamengo.”
A literatura rubro-negra
Partes de um mesmo universo e movidos pelo mesmo personagem, esses autores também se revelam diferentes dentro dessa unanimidade. A literatura rubro-negra não é necessariamente um manifesto, mas um território onde a devoção assume formas distintas.
Maurício Neves de Jesus enxerga nessa produção uma causa comum, mas ainda dispersa. Para ele, a literatura que nasce do clube precisa ser cultivada pelo próprio clube. Um gesto institucional de memória, como quem preserva o que o tempo tenta apagar.
“Não é exatamente um movimento”, diz. “Somos poucos, mas apaixonados. Para que isso se torne um movimento de verdade, o próprio Flamengo precisa criar um mecanismo de apoio. Tenho esperança que na atual gestão se torne algo recorrente”, disse.
Arthur Muhlenberg, por outro lado, não acredita em rótulos ou fronteiras. “Não existe escrita feita por e para rubro-negros. Existe escrita e existem leitores. O time não importa se a história é boa.”
Dunlop parece encontrar um meio-termo entre os dois. Reconhece a herança e enxerga a continuidade. “Esse movimento periga ter uns 130 anos. Começa com João do Rio e Mário Filho e chega até Manu da Cuíca e Geovani Martins. Hoje tem uma nova geração segurando a marimba.”
O estilo e a voz
Se o Flamengo é o mesmo, o modo de escrevê-lo muda em cada autor. Arthur Muhlenberg, Marcelo Dunlop e Maurício Neves de Jesus compartilham o mesmo personagem, mas moldam a narrativa de formas diferentes. Todos movidos pela vontade de compreender um sentimento que não se explica.
“A gente sempre tenta copiar alguém, não consegue e isso se torna nosso estilo”, brinca Dunlop. “O meu ritmo ao escrever é o seguinte: quero acabar a história e ir ler coisa boa, ou sair com a patroa. Mas não posso bater a porta na cara do leitor, então vou me despedindo aos poucos. Para mim, a crônica perfeita sobre o Flamengo é a do alvinegro Paulo Mendes Campos, Salvo pelo Flamengo. Empatada com aquela do tricolor Nelson Rodrigues.”
Muhlenberg mostra isso em suas obras. Heptacular, Hexagerado, Libertador, Da Lama ao Tri, entre outras. Ele faz do texto uma extensão da arquibancada: mistura humor, ironia e devoção. Nas páginas, a torcida fala, exagera, se contradiz e, ao fazer isso, se torna literatura.
Maurício Neves de Jesus segue outra trilha, sem se afastar da mesma emoção. Autor de Zico 70, da trilogia Me Arrebata e Junior 70, ele escreve o Flamengo como quem documenta uma fé.
Seus livros combinam narrativa, imagem e pesquisa histórica. Cada projeto é um gesto de preservação. E em alguns momentos essas mentes rubro-negras se encontram, como no livro 1981: o primeiro ano do resto de nossas vidas, escrito por Maurício e com participação de Arthur.
Quando o Flamengo vira imagem
O Flamengo também se escreve com imagens. Em Manto Sagrado! A evolução do design do uniforme do Flamengo, Carol Malachine transforma o clube em linguagem visual. O livro percorre mais de um século de camisas e mostra como a estética rubro-negra é também uma forma de contar história.
Cada faixa preta, cada botão, cada mudança de tecido é um fragmento de memória. O uniforme é mais que símbolo: é uma narrativa silenciosa sobre o tempo e o torcedor. Da mesma forma, a HQ Mengão do Meu Coração, de Márcia Ghelman, leva o bicampeonato da Libertadores para o papel em forma de quadrinhos.
Nas ilustrações da trilogia Me Arrebata, Maurício Neves une texto e imagem, palavra e cor. O resultado é o mesmo: um clube que se lê com os olhos, mas se sente com o coração. O Flamengo desenhado é também o Flamengo escrito.
Flamengo que cabe em cada leitor
Escrever o Flamengo é um ato de fé, memória e criação. Cada autor o transforma em algo novo: uma crônica, uma tese, um desenho, uma confissão. Juntos, constroem uma literatura que é também identidade.
Maurício traduz isso com clareza rara. “Mesmo antes da internet, se você juntasse um rubro-negro que ouvia o time na Floresta Amazônica e outro nos cânions de São José dos Ausentes, eles se sentiriam próximos, como amigos de infância. Não há separatismo rubro-negro. O Flamengo não é longe de nada, porque somos todos uma coisa só, como o Brasil deveria ser.”
O Flamengo é mais que tema, é modo de escrever e de existir. No Dia Nacional do Livro, ele reafirma o próprio poder de inspirar vozes, palavras e memórias.
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